domingo, 27 de abril de 2008

Lembranças

Outro dia perdi uma amiga numa confusão de desentendimentos quase sem fim, mas com começo. Se diálogo se estabelece com pessoas que trocam, como entender que as pessoas podem trocar quando estão em silêncio? Se “uma imagem vale mais que 1000 palavras”, porque um gesto não vale o mesmo? Perdas, rompimentos sempre nos fazem repensar uma série de coisas, nossas, dos outros, acho que é um momento muito bom para nos culparmos de toda desgraça humana, assim como tentar culpar o outro de qualquer falha que tenhamos cometido. Mas a sensação que me fica nisso tudo é de um grande vai e vai: sentimentos; responsabilidades; emoções; desejos; futuro passado. Convivo pouco com pessoas de uma forma mais íntima, e as que e conhecem dizem que sou confuso, o que não discordo de maneira alguma. Tenho muito mais trabalho para concretizar umas coisas bem simples que uma boa parte de meus conhecidos. Há tempos atrás escolher entre uma coca-cola e um suco de laranja na rua era um parto. Finalizar uma receita, nem se fale! Sempre acho que se pode afinar uma coisa ou outra, e ainda tento pensar em deixar espaço para que alguma eventualidade que se passe possa se integrar a esse “informação” e que interajam de alguma forma concreta, no que a comida for ao prato. Isso dá uma trabalheira do cão, porque não consigo expressar de maneira fácil o que se passa na minha cabeça, e o que aconteceu para que todo esse aparato fosse criado em torno de uma simples receita. Não conheço ninguém que faça isso, daí que não deve ser dos melhores caminhos, definitivamente. Acho que aqui começo a me sentir um dos mais culpados por toda desgraça humana.
Olha que louco, vivo discutindo com meu superior direto, o dono e chef de cozinha do restaurante, que devemos melhorar uma série de coisas. E sou um idiota em não sossegar quando ele diz que “as pessoas estão contentes com o que estão comendo!” Acho que estão mesmo, e quem não está contente sou eu por achar que ainda se tem que fazer algo: e continuo sendo um tolo por isso. Olha só, umas das coisas que mais me animaram a abandonar o caminho da academia e partir para os tachos foi a agilidade que a cozinha tem nas respostas, e rapidamente as pessoas estão dizendo “está muito bom” ou qualquer outra coisa do género, e com a mesma rapidez desconfio e sigo inquieto. O interessante é que não desconfio do que dizem, só me incomodo ao invés de chegar em casa e dar um grande beijo na minha mulher, sorrir e dizer “a noite correu bem!”
A perda dessa amiga, que continua viva pelas ruas de Lisboa e outras, me fez lembrar mais uma vez da tristeza de sorrirmos muito para coisas do passado. A “amiga” não cozinha diretamente, mas com ela fiz um prato que nunca mais se repetiu, e tentamos. Foi uma mistura de lembranças esse bendito prato: o queijo que veio do lado dela; a rúcula de tempos do Beto Batata ­“Simone, mozzarella de búfala, tomate seco e rúcula ­;as raspas de laranja,que sempre achei mais elegantes que as de limão; e mais uma coisinha de recuerdo do Miguel Castro e Silva. Foi uma coisa linda de encontro, mas esse nunca mais aconteceu. Vieram outros tão bons quanto mas aquele foi único!!
Mas de novo as lembranças. O prato que fizemos foi lindo naquele domingo de Páscoa, com as pessoas que estavam lá, quem comeu, comeu, comeu e viveu/vivenciou, para o resto da turma que ler isso fica só a sugestão, devidamente vaga, de coisas para se combinarem e depois contar aos amigos: “li algo num lugar …”. Comida como apoio a memória, ou algo como comida de forma terapêutica, para ligar, para juntar coisas, pedaços… parece que estou falando de um cozinheiro que conheço mais ou menos bem.
Engraçado, acho que até quando lembramos de algo muito ruim que comemos (passado de novo) damos risadas. Não chego a dizer que cozinha é alquimia, mas que transforma transforma!!! E tem uma coisa muito boa: também regula e mantém a ordem, organiza, em bom castelhano, ubica las personas!
Isso tudo saiu por causa da amiga perdida e Meredith Monk. Assisti um show dessa gentil senhora ontem que me remeteu a 1994, Campos do Jordão par ser mais preciso. Uma cidade com um festival de música para “gente grande”. Muita gente competente junta, bons músicos à solta por toda a cidade, lindo aquilo!! O ano era 1994, o Brasil ganhava da Itália a quarta Copa do Mundo de futebol, e nós bebíamos isso com vários litros de uma caipirinha que era um engodo: muito gelo liquidificado. Feijoada, caipirinha, Campos do Jordão, a Copa vinda de Branco, Dunga e companhia!!! Hoje sei que aquela caipirinha se chama de granizado em cozinha. Claro não sei se era bom, mas o que lembro, é que estávamos muito felizes e eu saí correndo meio nú pelos 2ºC que faziam lá. E lembro que lembrei disso quando fiz um prato de risoto de feijoada para acompanhar uma garoupa há tempos atrás.
O queijo daquele prato lá de cima era um queijo da serra vindo do Porto, através de amigos que lembraram….
O poeta já disse :
“O novo não me choca mais, nada de novo sob o sol
O que existe, é o mesmo ovo de sempre chocando o mesmo novo”

terça-feira, 15 de abril de 2008

Comida e lembrança

“Isso aqui tá muito ruim, bom é como fulano fazia quando estávamos na praia não sei aonde!!”
Que coisa isso de gostarmos muito das coisas que não nos estão próximas: sabores da avó; amores idos; amigos perdidos, e assim vai. Não fujo de total a essa regra quase infalível, lembro bem de uma manga que comi quando tinha 7 anos de idade em Ribeirão Preto, a cidade onde nasci. Cheguei em casa depois da escola e minha mãe me perguntou como estava manga, “tinha gosto de tutti-frutti”, foi minha resposta. E eu nem sabia que tutti-frutti, era uma grande mistura de frutas, só sabia que era um sabor de um chiclete da Ping-Pong. Mas lembro da sensação de sentir várias coisas ao mesmo tempo na boca e foi lindo, digo melhor, a lembrança daquilo é lindo.
E acho que por aí começamos uma pequena confusão e ficamos exatamente sem saber se o sabor era bom ou o conjunto de coisas vividas naquele momento é que fizeram a comida ser tão maravilhenta!! Do meu passado mais distante lembro de algumas coisas como a salada de língua de vaca da minha mãe, que hoje seria de matar muita gente do coração,afinal de contas não usava azeite (e estamos na Europa), ia óleo de milho aos montes, tomate, pimentão e cebola cortados muito grosseiramente e a bendita língua cozida em água. Não me consigo imaginar comendo isso hoje em dia, e não me passa pela cabeça que isso seja impressionante de sabores, mas…. Na maior parte das vezes comíamos isso no domingo, família reunida, único dia que meu pai comia conosco, ficar deitado no sofá vendo a nossa primeira tv colorida. Não era a comida, e hoje é a lembrança que me alegra, porque essa combinação não tem nada de mais, verdade seja dita.
O gosto é variado de todas as formas, e fico meio a vontade com isso pela coisa das negativas: não vim de família de cozinheiros; não estudei cozinha; não comecei lavando louça; e não sei um monte de coisas tradicionais, nem brasileiras, nem portuguesas, nem marcianas.
Isso de não ter a vivência do peso da tradição, bom ou mal, dá uma liberdade muito delicada que é desvinculada de um passado comum a um grupo. Muitas vezes digo que minha grande amarra de tradição ao Brasil são as frutas maduras tiradas do pé, isso sim é manifestação divina!!! À parte e lembrando minha cunhada, “o Brasil é um país muito novo”.
A coisa da liberdade delicada é o fato de pensar coisas, ter idéias e não machucar as pessoas que sejam mais ligadas às suas tradições, vou dando exemplos. Outro dia falava com uma escanção sobre servir vinhos misturados, ela tomou isso como uma heresia, mas se eu fizesse isso chamaria de drink e não vejo problemas em um drink de vinhos para acompanhar uma refeição. Agora como explicar isso para essa amiga portuguesa e deixá-la tranquila sem pensar que quero destruir aqueles preciosos líquidos pensados e engarrafados à espera de bocas apuradas para degustá-los?
Regra geral, em comida italiana, não se põe queijo forte, tipo grana padano num risoto ou prato de massa com frutos do mar. Uma resposta que me deram é que o queijo assim rouba o espaço dos frutos. Acredito que fazer comida é um estudo de proporções, então é claro que acredito que haja uma forma simpática de por esse queijo num pratos de frutos do mar, nem que fossem em crocantes com coentro (que na Itália também se usa pouco) para salpicar num risoto como fez um chef francês que gosto muito.
Na Europa toda se faz caipirinha com açúcar amarelo, isso nunca acontece no Brasil!!! Óbvio que deve haver algum grupo xiita brasileiro capaz de sabotar um bar que faça esse preparado desta forma, mas ele ainda não se manifestou. E não vejo brasileiros ´muito´ofendidos com essa história da caipirinha, deixa ´os caras´ fazerem como querem.
É possível que essas misturas não permitidas para alguns povos tenham muito de respeito às pessoas que faziam os produtos, não só por uma questão de habitus, social ou restrição alimentar (tipo vinho tinto e melancia), se sinceramente compreendo melhor se respeitamos as coisas no ambiente afetivo, porque acredito que dessa forma sobra espaço para sugerir, sim, outras formas de amar/cozinhar/beber, outras formas de mostrar uma mesma transformação.
Uma sugestão que fica por aí, é de que a tradição compreenda esses moçoilos afoitos, cheios de vontade que andam por aí, e que esses olhando para trás possam ter a atenção e carinho de um filho que pega a caixa de jóias da avó e a tranforma na caixinha de bilhetes de recuerdos que a mãe trocava com o pai.
Como o Donizetti, trombonista baixo da Sinfônica do Estado de São Paulo, dizia: só o amor constrói!!! E que é a cozinha?