sexta-feira, 10 de outubro de 2008

O que se come

Uns meses atrás estive em Barcelona por uns dias, cidade grande e movimentada, como toda uma turma de cidades assim na Europa e pequena parte do mundo que conheço. Fui sozinho, um hostal simpático perto de Boqueria e Ramblas com suas estátuas vivas e um mundo de turistas, mas perto de uma Fnac também, e aqui começa nossa pequena história.
Ia prá Fnac, passei por um café com jornais e revistas prá vender, e resultado: um guia da noite barcelonesa e umas tantas revistas de comida.
Um pequeno parênteses aqui. Não gosto de negativas e nem muito de muita enrolação, regra geral, mas acho muito divertido dar uma volta e gerar uma pequena pouca expectativa em algumas circunstâncias, mas dois parágrafos já bastam.
Numa das revistas tinha um artigo sobre trash cooking marinho, comidas com entranhas de peixes pouco ou quase nunca utilizadas, algumas sugestões de uso e técnica de manuseio. Esses espanhóis realmente têm tempo prá pensar nas coisas mais variadas a despeito de comida. Eu já disse em algum lugar, que a cozinha espanhola é o que é, por um lado, devido a existência de Dali, Picasso, Miro. Acho que essas figuras tocaram numa parte muito sensível das manifestações do espírito humano, e contribuíram muito para o que se põe no prato no ambiente de alta gastronomia espanhola. Acho, porque não entendo patavina de pintura, mas não sou bobo. Agora, não tenho realmente idéia alguma de onde foram lembrar de usar fígado de peixe prá um vinagrete, como faz Adriá, por exemplo. Não que não tenha ideia, mas é que a coisa de grandes aproveitamentos de entranhas me lembra bichos de patas, e aqui na Europa os franceses, mas é só um achismo, sem qualquer pesquisa mais aprofundada.
Mas o que me chamou mais a atenção foi uma citação de que alguns cozinheiros do país basco estavam fazendo coisas com esperma de peixe. A ´pequena história´começou lá em cima, e minha divagação sobre esperma de peixe, espermas e secreções e prazeres, saiu de Barcelona e aportou em Lisboa.
Não lembro de ter tido uma sensação de estranheza quanto à utilização de esperma de peixe prá cozinhar, afinal de contas já se utilizam as ovas há muito e muito tempo. Mas me bateu uma curiosidade de gênero: será que a alta cozinha é tão feita por homens que não se pensava em usar esperma de peixe (ler figura masculina marinha) por uma espécie qualquer de preconceito? “Será que seria” mais fácil uma chef de cozinha pensar nisso, e ficamos na coisa do gênero? Por que talvez não tenhamos ouvido falar em uso de esperma de animais de patas, na gastronomia? Aqui deixo uma lembrança de Adriá, que sugeriu que a água e seus moradores aportam grandes boas surpresas para a alta gastronomia. Depois desse passeio de um lampejo, claro que fiz uma pequena abstração e caminhei no sentido do universo humano dos homens e mulheres, e suas práticas quase cotidianas que envolvem esses dois bichinhos curiosos.
Se quando nos sentamos em um restaurante gastronómico, entramos num universo particular de criações que talvez sejam compreensíves tão somente naquele conjunto de espaço/tempo, cores, odores de sólidos e líquidos, sons e nos preparamos para abrir a boca e o peito e sentir e sentir e sentir, o que nos impede de criar esse mesmo ambiente numa relação afetiva de duas pessoas? E prá tentar fazer algo um tiquinho mais didático e dar atenção aos dois gêneros, conformo essa relação afetiva com um homem e uma mulher, e coloco essa relação num universo onde não existe AIDS e as pessoas se compreendem e querem compreender mais (e talvez se experimentarem mais)
Num livro publicado em Portugal com o título de “Casa dos budas ditosos”, há uma passagem onde a narradora diz que a “mulher que não engole o esperma de seu homem não o ama.” Talvez existam mais homens que mulheres que gostem de fazer sexo oral, e nisso os homens estão a quase todo instante bebendo sua parceira – se alimentando dela -, será que eles as amam todo o tempo? Será que a mulher que não engole o esperma de seu parceiro, rejeita a sua maior demonstração sensível de prazer com ela? Se grande parte dos prazeres da carne estão em manifestações ou metáforas líquidas, como a”àgua prá matar a sede”, “carne suculenta”, na “manga que escorre”, de onde nos incomodamos com essas práticas sexuais que poderiam aproximar mais e mais se a colocarmos nesse ambiente gastronómico. Ensaio de explicar, num pequeno francesismo.
O sushi em cima de uma mulher pode ser sensual e já foi usado em ambiente comercial em vários lugares há pelo menos uns 14 anos. Mas será que temperavam aqueles deliciosos pedacinhos de peixe ultra frescos com as mulheres, e suas prazeirosas secreções, assim como se usava o molho de soja? Na minha cabeça isso seria mais que plausível e pertinente, afinal de contas fora a sensualidade da situação, poderia ser uma experiência gustativa deliciosa; sou homem e conheço esses sabores, mesmo que em separado – e sou cozinheiro e tenho memória gustativa que me ajuda juntar sabores na cabeça sem por na boca.
Agora coloque aquele nosso casal em casa, na sua casa (na deles), no seu habitat sensível da relação e experimentos particulares, por que não o sashimi com o tempero das entranhas femininas que foram entregues à umas deliciosas carícias de seu parceiro? Porque não trocar o champagne que acompanha o morango, por aquele mesmo líquido inebriante? Do lado do homem, se a ostra é afrodisíaca como dizem, porque não a mesma ostra com o resultado do ânimo que gerou no parceiro?
Será que entendemos o ambiente de uso dos produtos dos peixes porque estão ausentes desse envolvimeto tão pessoal que é o sexo por prazer e amor de prazer, que é muito muito humano?
O que defendo com unhas e dentes, é uma forma de personalização das práticas comidas e prazeres, dessas coisas que passam pela boca e nos alimentam o corpo e os sentidos. Dizem que cozinhar prá alguém é uma demonstração de afeto muito grande, será que uma salada com um molho mais entranhado, fruto de um gozo meio desmedido vai ser melhor, ou tão somente uma outra experiência sensorial/gustativa? Uma amiga me disse que não via no que um molho com esperma de seu parceiro poderia ser bom. Outra amiga sorriu com uns dos maiores ares de felicidades numa descoberta e disse “acho que eu ia adorar, mas eu é que gostaria de fazer o molho!” Para a primeira, esperma ter aportes de acidez, que poderiam ser simpáticos num vinagrete muito ligeiro, para a segunda ´vá sorrir`, que isso também nos alimenta.
Naquele restaurante gastronómico de trás, passamos por experiências, porque não não experienciar no nosso particular, da intimidade e do afeto? Realmente isso pode ser tão somente um delírio, ou mesmo uma coisa de alguém pervertido. Mas não creio que quando temos alguém, gostamos de alimentar essa pessoa, e alimentar é alimentar, correr riscos de criar uma nova dietética, boa e querida, rica de particularidades perceptíveis tão somente a esse outro.
A coisa toda aqui é alimentar!! Sempre achei que fruta madura tirada do pé era uma dádiva divina, e se deus é você, ele, eu, o Huguinho, Luizinho e Zézinho, a Mafalda e Magali também, porque não nos podem tomar a´nossa fruta´ do pé, no ponto mais maduro que poderia haver… e comer de se lamber?!


Antes de publicar esse texto enviei uma cópia para a Gisella, uma amiga de uns anos que está grávida de uma meninota, aí vai:
"Hey!
acho que sim, a experiência gastronómica como experiência personalizada, personalizante de cada casal disposto a fazer experiências.
Se alimentar-se assim (por experiência, jogo etc) pode fazer parte do nosso imaginário reforçemos então a necessidade de alimentar o casal enquanto junção de dois mundos cheios de outros tantos líquidos!
Que viva a transgressão! "

Acho que era um final assim que queria para esse texto!!!! A questão, num resumo da ópera, é de que carinho damos a quem amamos e, nesse particular como fazemos o alimento desse amor amado. Num misto de “jogo, experiência personalizada, personalizante… imaginário…junção de mundos cheios de outros tantos líquidos”, claro que no meio destes outros líquidos, leio a Gisella com a barriga guardando e aquecendo uma criança que vem de fruto de junção de afetos concretizados numa terceira pessoa. Acho que devia me abater por definir assim um filho aguardado. Mas é na mistura/confluência dessas coisas todas que falou a Gi, que podem surgir bons encontros, e vai e vem e sobe e desce…. movimentos.

Obrigados, Gi daqui!!