Quase como sempre, estava falando com um conhecido/amigo novo, e me lamentando um pouco de ter ouvido de um outro cozinheiro bem competente daqui de Portugal (e assim começa a trama) da necessidade de pontos fortes de relações gastronômicas com o lugar que vivemos... ou algo muito próximo disto. Ele me falou dessa necessidade quando disse que não havia nem formação formal de cozinha, aquilo de escolas e de não ter uma infância gastonômica tão rica assim, de não essa bendita relação vertical que acredito as pessoas terem com a comida aqui na Europa e outros continentes que incluo no "velho mundo", donde está fora a América. E prá lembrar, "sou brasileiro de estatura mediana...."
No meio da lamentação, não tão dramática, com o André me dei conta de algumas coisas quee se ligaram a toda uma turma de outras, olha só.
Começando pela negativa, acho que fica mais gracioso prá falar de coisas boas. Não tive uma infância marcada pelo aroma fresco do campo; dos cozindos lentos de horas que minha avó poderia ter feito; dos pães variados que poderiam ter saído do forna à lenha da casa da Vila Tibério (forno que foi embora logo porque juntava um monte de baratas); das galinhas mortas em casa prá fazer cabidela. Essas coisas poderiam ter se passado se vivesse numa cidade muito pequena, a beira do campo ou ainda se frequentasse o campo, ou ainda se tivesse alguém que cuidasse só do que comeríamos em casa, o que também não aconteceu, mas....e chega a graça finalmente.
Tenho a sensação de ter crescido na rua, fazia de tudo prá não estar em casa. A rua era lugar para ficar jogando bola, soltando pipa, andando de bicicleta e fazendo rampas prá saltar como se fosse motocross, ia nadar no clube, e comia muita fruta no pé, na casa de quem fosse, pedida ou roubada.
A pinha da casa da minha primeira namorada nunca teve igual, lembro que as vezes nos encontrávamos prá namorar e eu subia no pé, pegava umas frutas e depois íamos namorar. A tia Sílvia tinha um quintal de matar de grande em Araraquara na casa dela, em especial, lembro de passar o mês de julho em 80, logo após a morte do meu pai, comendo manga e jabuticaba todos os dias daquelas férias com o Jean, um primo que regula de idade comigo. Era um pequeno ritual todo dia assim que levantávamos: subir na mangueira encher um balde de manga espada e seguir prá jabuticabeira, de matar de bom!!! Lembro de atravessar o quintal de uma vizinha prá chegar à goiabeira do jardineiro da rua Aurora, onde passei uns tantos anos de minha vida. E com goiaba, é claro que não só se comia, tinha a guerra de goiabas podres entre a turma. Quem já comeu carambola no pé, louca de madura, e vendo a mulher que poderia ser a musa inspiradora de toda sua vida passeando por ali, que atire a primeira pedra.... claro que ficava impressionado com a fruta, a beleza da garota, eu tinha 12 anos. Subir num pé de amora de smoking, e voltar correndo para um gravação?! Comer joão bolão, uma fruta de cor vinho que não tenho a menor idéia de que outro lugar possa ter isso a não ser a USP de Ribeirão!!
Mas também ficava em casa e mesmo que minha mãe trabalhasse sempre tinha qualquer coisa simpática pro lanche da tarde ou a hora que fosse que precisássemos comer. A rosca de coco em formatos de trança, uma massa que parece massa de focaccia, bem macia e docinha. O pudim de pão, nem um pouco inglês, que lembro de separar metade pro Caio e metade prá mim, tinha sensação de poderia passar minha vida comendo aquilo. Saladas de rúcula e escarola, quem pede prá comer folha quando é criança?! Suco de beterraba e abacaxí?!
Uns poucos pedaços de surubim/pintado feitos na brasa pelo meu pai, não sei que peixe poderia ser melhor no universo naquele momento. Acho que eles ficavam meio secos, mas a cor meio laranja, flamingo por fora com uns pretinhos de queimado, putz!!! O arroz com feijão, com carne moída misturada ou não, dividido em 4 partes no prato prá gente brincar, fantástico!!!
Um pouco mais crescido, voltava de madrugada prá casa e fazíamos um molho a bolonhesa que era uma maravilha e íamos dormmir, assim já poupávamos o trabalho do café da manhã. Comer uma dúzia de laranja lima, pequena e doce vindas da tia Sílvia, depois do almoço?! Nem mastercard paga isso!!!
Cheguei a pensar que essa infância, adolescência gastronômica pudessem não colaborar muito para as coisas que faço hoje, por sorte a gente fala aqui e ali e pode, se quiser se deixar ser tocado pelo que ouve. Uma amiga psicanalista me disse que eu era pervertido há anos atrás, que gostava de tirar as coisas do lugar, e gosto. A Cristiane, que alimentou a familia do 10 aos 25 anos, cozinhando todos os dias, me chama de sapeca. As conversas de segunda-feira agora com o Baena, o cozinheiro lá de cima, e ontem com André Magalhães, o conhecido/amigo novo, que cozinha e compreende muito bem. Luísa me ouvindo por umas pequenas horas enquanto eu reflexionava sobre frutas. Ao menos por hora me alento muito bem misturando essas coisas todas vindas destas pessoas. Clarezas, confusões, mas tenho certeza que sobretudo, disposição prá fazer as coisas de maneira mais alegre, com informação, mas não sisuda, sapeca, moleque, mesmo. A barriga tem que estar no fogão prá se acertar o ponto das coisas, mas a cho que a cabeça e o peito têm que voar e andar por `ita-mares` navegados ou não!
Numa conversa com a Cristianne, em dado momento ela me pergunta "onde você quer chegar Ivan?" Eu olho e num lampejo ela mesmo diz "você só está construindo, não?" Dou um sorriso maroto e concinto com a cabeça.
Acho realmente que existe essa possibilidade da comida sapeca/moleque, como quando éramos criança e explicávamos coisas como bem queríamos, certas ou não, mas elas tinham um porquê.Crescidos, podemos pensar um tiquinho mais e ir atrás do sorriso largo, da risada, da gargalhada solta, atrás de alimentar com felicidade.
Esperas
Há 11 anos